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PROGRAMAÇÃO: Março de 2012
Ciclo Werner Herzog Até ao Fim do Mundo
Entrada livre
PROGRAMAÇÃO (cont.)
Sala de exibições
Pequeno auditório
Casa das Artes de V. N. de Famalicão
Parque de Sinçães - V. N. de Famalicão

Jorge Mourinha, Público de 8 de Setembro de 2011

Uma realizadora que gosta de actores e uma actriz que gosta de desafios encontram-se pela primeira vez, mas parece que nunca fizeram outra coisa na vida a não ser trabalharem juntas. Teresa Villaverde e Beatriz Batarda falam de "Cisne", que chegou às salas vindo do Festival de Veneza.
"O que eu gosto mais no cinema são os actores", diz Teresa Villaverde, e tem-no provado: nas suas cinco longas-metragens anteriores, dirigiu Maria de Medeiros, Teresa Roby, Ana Moreira ou Galatea Ranzi em interpretações notabilíssimas, muitas delas premiadas em festivais (nomeadamente Maria de Medeiros, em Veneza, por "Três Irmãos").
O seu novo filme, "Cisne", chegou ontem às salas portuguesas depois de ter passado esta semana na secção paralela Orizzonti do Festival de Veneza. A sorrir, a realizadora diz apenas "ter pena de que o filme não esteja a concurso numa secção que premeie actores" - prova, como se o filme não bastasse, de que "Cisne" é o encontro quase perfeito entre uma realizadora com um universo muito particular e uma actriz que gosta de desafios e diz não ter interesse nenhum em personagens "normais". Beatriz Batarda interpreta Vera, uma cantora cujo regresso a Portugal lhe levanta questões fulcrais sobre a vida, o amor e os sentimentos - é uma "estreante" no cinema de Teresa Villaverde que, no entanto, lhe parece ter sempre pertencido.

Reunidas pelo Ípsilon num hotel lisboeta poucos dias antes de partirem para Veneza, Teresa e Beatriz confirmam a relação de conforto e confiança que se instalou rapidamente entre elas. Mas recusam-se a encarar o seu encontro como "perfeito". Para a realizadora, "não vale muito a pena estar a comparar, os filmes são todos muito diferentes"; para a actriz, as comparações são "um bocadinho injustas: "A Ana Moreira, principalmente, encontrou uma linguagem com a Teresa que eu teria muita dificuldade em desenvolver." É o princípio de uma hora de conversa fluida que explica a dinâmica entre duas mulheres que, antes de se conhecerem, já tinham um amigo em comum.
Beatriz Batarda - Tínhamos um amigo muito querido em comum, que era o José Álvaro de Morais; à partida [isso] vinculava-nos de uma forma muito espontânea. Havia já uma vontade muito grande de nos conhecermos. Eu já conhecia o trabalho da Teresa e o arranque já foi muito disponível de parte a parte.
Teresa Villaverde - Claro que eu conhecia também já o trabalho da Beatriz, mas não havia nada [aquela coisa de] "um dia gostava de trabalhar com esta pessoa". Foi de repente. Mandei-lhe o texto, encontrámo-nos a primeira vez e pareceu-me logo tudo a coisa mais simples do mundo, daquelas coisas que só podem sempre crescer e melhorar. Uma coisa que acho fantástica no trabalho entre duas pessoas é não haver intermediários. Apesar de o cinema ter uma estrutura, uma câmara, outros actores, entre cada actor e o realizador não pode haver absolutamente nada no meio. Entre mim e ela não havia intermediários, e quando ela está a trabalhar com os outros actores não há intermediário nenhum entre ela e os outros.
Beatriz - Embora me sentisse sempre muito próxima da Teresa e em diálogo com a Teresa, senti que foi sempre um trabalho de equipa [com o elenco]. O facto de o Israel Pimenta ser um artista plástico que não é um actor convencional, o facto de o Miguel Nunes ser muito jovem e estar a começar o Conservatório, de o Sérgio Fernandes ser um miúdo com uma vida complicada - de repente o encontro daquelas quatro pessoas era muito delicado, com muito respeito pela história pessoal de cada um. E confesso que isso também me ajudou muitíssimo, porque me levou a sair do conforto do "agora vou representar". De repente eu não estava perante actores, estava em diálogo com pessoas. Isso também me pôs numa posição de maior atenção e talvez mesmo de fragilidade.
É curioso que fale de fragilidade, porque a Teresa fala no dossier de imprensa da "força dos frágeis", que é um tema recorrente nos seus filmes.
Teresa - A força dos frágeis é que é a beleza, porque a força dos fortes é uma coisa obscena. Eu sou mais da força dos frágeis.
Beatriz - Os fortes podem dar-se ao luxo de ser frágeis - os frágeis não têm outro remédio se não serem fortes para sobreviver. Acho que é sempre muito mais interessante a força dos frágeis.
Teresa - E os frágeis são sempre obrigados a ultrapassar-se.
A presença nos seus filmes de actores e não-actores é pensada para trazer ao de cima essa força?
Teresa - Para mim, é muito mais fácil [trabalhar nos papéis principais com] pessoas que não têm experiência. Lembro-me da minha experiência como actriz - péssima actriz... (sorriso) - no filme do João César Monteiro ["À Flor do Mar", 1986]. Foi-me bastante útil sentir quando as pessoas não são actores e se sentem aflitas, atrapalhadas; não sai nada daquilo que são ou que podem ter para dar. Mas se se consegue criar uma plataforma, um patamar de entendimento, acho que pode ser maravilhoso. Isto para dizer que não acho que seja mais frágil uma pessoa que venha fazer um papel e não seja actor. A fragilidade é que é minha - sei que com pouco tempo não consigo fazer aquilo que é preciso com um actor que já vem com o seu "programa".
Beatriz - A tua linguagem, a forma como tu filmas, neste caso juntamente com a iluminação do Acácio [de Almeida, director de fotografia], é muito dura e reveladora, não permite as ideias pré- concebidas daquilo que é a representação. Cada plano é muito forte, muito poético, mas muito exposto; requer uma linguagem particular de comunicação entre os actores à imagem daquilo que está na cabeça da Teresa. Se calhar um actor que não tem muita experiência está mais limpo e disponível para ir de encontro àquilo que ela está a inventar. Um actor que tem muita bagagem tem todo um processo de... "descamação" para estar lá. Não acho que seja uma fragilidade dela, acho é que nós é que temos de ter essa capacidade de nos despojarmos. Os bons actores são frágeis, e usam isso como uma força.
Mas no caso dos filmes da Teresa, que exigem de raiz esse despojamento, não acaba também por ser um desafio maior?
Beatriz - Mas foi um desafio muito fácil.
Teresa - Há realizadores óptimos que têm esse prazer no "descamar" do actor. Eu não tenho nada disso, preciso de sentir que os actores confiam em mim, e eles têm de poder confiar em mim com toda a segurança. Há um limite a partir do qual eu não passo, não quero, e também não trabalho assim.
Uma questão de pudor?
Beatriz - Mais de respeito. Não é preciso violentar para se descobrir coisas.
Teresa - Exacto.
Beatriz - Mesmo as coisas mais emotivas do filme foram coisas perfeitamente inesperadas. Aquele momento do concerto [um longo grande plano de Beatriz Batarda em palco] foi um momento de imprevisto, que até é o teu lado menos forte...
O guião mudou muito durante a rodagem?
Teresa - Sim. Quer dizer, muito, muito não sei...
Beatriz - A linguagem, os diálogos, algumas coisas foram sendo alteradas porque se iam tornando redundantes à medida que íamos filmando.
Teresa - Não havia aquela coisa - que no fundo nem sequer é útil - que é o respeito absoluto pelo papel, pelo que está escrito. É bom sinal quando temos vontade de mudar porque as coisas que estão a acontecer estão a pedir outras, maiores, mais vivas do que no papel. Mesmo fora dos estritos momentos de estar a filmar, gostei muito sempre de olhar para a Beatriz, mas também sentia que ela estava a olhar para mim e acho que isso é muito importante.
Isso é mais uma questão de a Teresa servir o trabalho da Beatriz, de a Beatriz servir o trabalho da Teresa, ou da criação de um universo novo a partir dos vossos dois universos?
Teresa - Acho que é [mais a criação de um universo novo]. E não sei se a Beatriz concorda, se calhar foi fácil porque há uma parte de mim que também é parecida com ela, somos parecidas em algumas coisas. O que aconteceu neste filme foi: nós [a puxarmos uma pela outra] sempre ao mesmo tempo para chegarmos a outra coisa.
Beatriz - Apesar de haver já um argumento e uma história muito concreta e muito bem arquitectada, desde o início senti que a Teresa tinha enorme interesse em descobrir-me, ou em descobrir a Vera em mim. De certa maneira, o facto de me ter feito sentir implicada e responsável no processo permitiu-me trazer coisas pessoais do meu universo. Para mim o teatro e o cinema têm de ser sempre viagens. E nessa viagem há catarses que podem ser pequenas ou grandes, que podem ser construídas pela forma e não pela minha interpretação. Mas há sempre uma viagem, uma descoberta. Há pouco a Teresa falava da confiança dela em mim e nos seus actores - isso para mim revela uma enorme maturidade da parte do realizador, confiar que os actores também podem ser participantes, não ficar escravo da forma. Isto é arriscado para um realizador, e acho que a Teresa, com muita tranquilidade, arriscou nas pessoas e acreditou que poderia ir mais longe com elas.
Teresa - O que eu gosto mais no cinema são os actores, o que mais faltava é que eles não pudessem confiar em nós. É um trabalho de uma generosidade incrível. Um bom actor de cinema é um co-autor do filme, é o seu olhar, a sua cara, a sua voz, o que nós vemos são eles... Como é que eles dão tanta coisa deles para uma coisa que não foi desde início gerada por eles?
Cisne
Sinopse
Vera (Beatriz Batarda) é uma cantora de pouco mais de 30 anos, em tournée por Lisboa.
Pablo (Miguel Nunes), um rapaz solitário e enigmático, foi quem ela escolheu para motorista e
companhia nas suas intermináveis noites de insónia. Certo dia, Alce (Sérgio Fernandes), um
miúdo pobre protegido de Pablo, mata acidentalmente uma pessoa. Vera envolve-se então com a
criança e, ajudando-a, ajuda-se a si própria.
Um filme de Teresa Villaverde ("A Idade Maior", "Três Irmãos", "Os Mutantes") em competição na secção Horizontes no Festival de Veneza (31 de Agosto a 10 de Setembro).
Download do Dossier
Ficha Técnica
Título original: Cisne (Portugal, 2011, 102 min.)
Realização e Produção: Teresa Villaverde
Interpretação: Beatriz
Batarda, Miguel Nunes, Israel Pimenta, Rita Loureiro,
Marcello Urgeghe
Fotografia: Acácio de Almeida
Montagem: Andrée Davanture
Estreia: 7 de Setembro de 2011
Distribuição: Alce Filmes
Classificação: M/12
Críticas
A fábula do feminino
João Lopes, Cinemax
Logo após a passagem em Veneza, "Cisne", de Teresa Villaverde, chega às salas portuguesas: uma boa estratégia de difusão para um filme que confirma a coerência interna do universo da cineasta.
"Cisne", de Teresa Villaverde, passou em Veneza e, um dia depois (8 de Setembro), surge em estreia nas salas portuguesas: eis um dado objectivo que não estará a ter a evidência noticiosa que merece.
De facto, não poucas vezes, os filmes portugueses têm perdido oportunidades reais de encontrar o seu público devido a uma deficiente relação com a actualidade. Mas, como se prova, é possível contrariar essa "maldição" e... mostrar o filme!
O mínimo que se pode dizer de "Cisne" é que mantém a coerência interna de um universo dramático muito pessoal, sempre organizado em torno de fortíssimas personagens femininas (lembremos o emblemático "Transe", com Ana Moreira, lançado em 2006). Assim volta a acontecer com Vera, a cantora de "Cisne" à procura do seu tempo perdido... É uma demanda que se abre, como sempre, para os espaços misteriosos do universo infantil e adolescente.
Bastará, aliás, recordarmos esse filme notável que é "Os Mutantes" (1999), por certo o momento mais alto da filmografia de Villaverde, para percebermos como a cineasta encena e reencena a coexistência silenciosa entre o desejo feminino e os segredos de um tempo para sempre habitado pela nostalgia do calor materno. "Cisne" transforma-se, então, numa fábula sobre o feminino: para Vera, as crianças são, talvez, os outros a que ela ainda pertence (ou pode ambicionar pertencer). Com serena obstinação, o filme resiste a explicitar em excesso a relação entre Vera e as outras personagens. Será, talvez, uma forma extrema (e extremamente arriscada) de desafiar o espectador, mas envolve também a resistência às facilidades de qualquer naturalismo "psicológico".
Trata-se, afinal, de criar um espaço de silêncio, tensão e ternura em que Vera existe como uma alma hesitante, contemplando a sua própria errância: na caracterização dessa respiração muito íntima, Beatriz Batarda é inexcedível de rigor e contenção.

