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PROGRAMAÇÃO: NOVEMBRO 2013
Sala de exibições
Pequeno auditório
Casa das Artes de V. N. de Famalicão
Parque de Sinçães - V. N. de Famalicão

Prólogo
Fade in
1. Exterior, mundo mudo
Um vagabundo mítico, feito de genica, nasce em comédia no ano 14 do último século
começado por mil.
Dissolve in
Legenda
99 anos depois
2. Interior, sala de projecções
Reputado cineclube, de Joane, encomenda som para filme. É convidada banda. Câmara
aproxima-se, outras formas aparecem.
Dissolve out
Dissolve in
3. Exterior, uma casa, das artes de Famalicão
Atravessamos jardim geométrico, cheio de ervas, crianças lutam. Câmara desloca-se, no ecrã
estão palavras: A 30 de Novembro, 22 horas. Ouvimos música arrebatadora, título aparece:
bueno.sair.es em O Garoto de Chaplin.
Fade in
4. Interior de grande auditório
Enorme, está escuro, silhueta é projectada em ecrã. Baixos reflectidos por oposição à luz.
Narrador
Primeira longa de Chaplin, turbulência emocional. Do apressado casamento com a
jovem Mildred resulta nado, morto em 3 dias. De perda resulta filme. Respeitando pudor,
bueno.sair.es constrói narrativa musical, paralela. Deixa que viva personagem querida,
transformando-se. Afinal, cinema é arte obscena, e amor. Nunca, desde que o mundo é
mundo, um mito recebera adesão tão universal, escreveu Bazin. Segredo desvendado: o
vagabundo, de fraque ridículo, bigodinho bengala e chapéu, será pai de criança abandonada. A
banda, metamorfose ao avesso.
Fade out
A RAPARIGA DE PARTE NENHUMA de Jean-Claude Brisseau
Sinopse
Após um violento ataque que a deixa quase inconsciente, uma jovem é salva por Michel
Deviliers, um professor de Matemática reformado. Desde o falecimento da mulher, algum tempo
antes, que vive exclusivamente para as suas intensas pesquisas sobre a Bíblia. Porém, a
presença daquela mulher vai alterar a dinâmica a que ele se habituara, transformando a vida do
velho professor para sempre...
Um filme dramático com argumento e realização do francês Jean-Claude Brisseau ("Coisas Secretas ", "Os Anjos Exterminadores"), que conta com os actores Virginie Legeay e Jean-Claude Brisseau nos principais papéis.
Ficha Técnica
Título original: La Fille de Nulle Part (França, 2012, 91 min.)
Realização, Argumento e Produção: Jean-Claude Brisseau
Interpretação: Jean-Claude Brisseau, Virginie Legeay, Claude Morel, Lise Bellynck
Fotografia: David Chambille
Montagem: Julie Picouleau
Estreia: 25 de Abril de 2013
Distribuição: Leopardo Filmes
Classificação: M/12
Críticas
Do segredo das coisas
Luís Miguel Oliveira, Público de 25 de Abril de 2013
Belíssimo conto outonal, a história de um homem no fim da vida, entre as suas recordações e fantasias.
Saudemos o regresso às salas portuguesas de Jean-Claude Brisseau, um dos mais singulares mas também, digamos, “esquecidos”, cineastas franceses contemporâneos. Com um filme magnífico, A Rapariga de Parte Nenhuma, tão magnífico como simples, discreto, subtil, despido de “ganchos” e outros atributos auto-propagandísticos. Menos ainda do que na trilogia com que por cá Brisseau se tornou mais conhecido (As Coisas Secretas, Os Anjos Exterminadores e À Aventura, este último editado apenas em DVD sem passagem pelos cinemas), que com a sua tónica no “desejo feminino” não deixava de oferecer alguma “sensação”. Nada disso - ou muito pouco disso - em A Rapariga de Parte Nenhuma, objecto artesanal quase amador: rodado praticamente num só décor, que por acaso (ou por acaso nenhum) é o apartamento do próprio Brisseau, com uma equipa reduzida e meia-dúzia de actores, sendo que a equipa e os actores mal se distinguem (Brisseau interpreta o protagonista, e a “rapariga de parte nenhuma”, Virginie Legeay, também é creditada como assistente de realização). Traz algum pedigree festivaleiro: ganhou o Leopardo de Ouro em Locarno 2012, prémio atribuido por um júri presidido por Apichatpong Weerasethakul.
Apichatpong está, em todos os sentidos, bem longe de Brisseau, mas nem custa imaginar que se tenha sentido próximo deste filme: também aqui, como nos filmes do tailandês, há fantasmas e fantasias, um vivido e um imaginado filmados sem definição estanque, um imaginário mitológico que se materializa em pleno quotidiano realista. Mas isso é o fim do filme. Que começa quando a casa do solitário e viúvo Brisseau, intelectual cinéfilo com as estantes pejadas de DVDs (haverá tendência, por todas as razões, a ver na personagem um duplo do realizador, o que será tão verdadeiro como irrelevante), chega uma rapariga ensanguentada que não tem eira nem beira. Vem de parte nenhuma, nem tem parte nenhuma para onde ir. O velho solitário acolhe-a, com reserva primeiro, com genuína afecção depois de algum tempo. Ela desafia-o (como se, jogando com as armas femininas, “desafiasse” também o erotismo da trilogia anterior), abandona-o, depois volta. Começam os fantasmas. Brisseau vê nela a recordação da mulher, morta vai para 29 anos. Uma pequena gota hitchcockiana de sabor a Vertigo começa a insinuar-se - será esta rapariga a “reencarnação” dessa mulher? Pouca importa se sim, a hipótese é suficiente para o jogo de fantasmas que entre eles se estabelece e que constitui a base da relação e do entendimento. Também com o seu quê de pigmaleónico: ele precisa dela para conseguir voltar a escrever, e quando o livro está pronto atribui-lhe a co-autoria. Mas se isto tem sabor a Vertigo há outro filme de Hitchcock que é explicitamente nomeado: num raro passeio pela rua, a personagem de Brisseau é interpelada por uma antiga aluna do liceu, que lhe menciona as aulas “sobre Psico e os filmes de John Ford”. Pouco depois, na primeira incursão por um sobrenatural muito Cocteau (como já nas Coisas Secretas), um pequeno “anjo exterminador” muito branco passa pelo ecran como um flash, e o movimento parece quase um citação de Psico. O que não é importante; o importante é que esse momento marca aquilo que Brisseau é verdadeiramente singular (e que o aproxima, efectivamente, de Hitchcock): a associação entre o medo e a beleza, como se uma coisa implicasse a outra, e a outra não o fosse sem a primeira última meia-hora de A Rapariga de Parte Nenhuma é assim, alucinante, entre o que mete medo e a profunda beleza (plástica, figurativa) do que materializa esse medo. A morte, ela própria, variação sobre a antropomorfia clássica: aquela mulher envolta num manto preto, com a luz do sol que entra pela janela a dar-lhe pelas costas, é assombrosa. Desde Bergman que não se filmava a morte assim. Melhor ainda do que Bergman.
Prodigioso na sua construção dramática, com imenso Mahler vindo de nulle part na banda sonora, A Rapariga de Parte Nenhuma é um belíssimo conto outonal, história muito delicada e ao mesmo tempo muito dura de um homem no fim da vida, entre as suas recordações e as suas fantasias, consubstanciadas em cinema, arcaico, alimentado por mitologias várias vindas do fundo dos tempos. Poderoso, emocionante, belíssimo.
