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Adaptação ao cinema do romance de José Cardoso Pires, "A Balada da Praia dos Cães", um dos melhores trabalhos do realizador José Fonseca e Costa, parte de um engenhoso argumento construído como um inquérito policial, que surpreende pela sua eficácia narrativa. Co-produzido por Portugal e Espanha, este filme de sinuosa atmosfera política e passional, sobre o caso de um preso político nos anos sessenta que aparece morto, dá origem a um complexo inquérito policial, não só para determinar a identidade do assassino como também a própria origem do crime. O filme abre com uma belíssima primeira imagem: um "travelling" na praia até junto de uns cães que rodeiam um cadáver. Uma imagem metafórica da incursão pela memória dos tempos e agruras do Portugal fascista. Cópia digitalizada pela Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema no âmbito do projecto FILMar, integrado no Mecanismo Europeu de Financiamento EEA Grants 2020-2024.
O reflexo de um país numa crise de identidade João Araújo, à pala de Walsh Umas linhas de texto logo no início do filme ajudam a compor o contexto histórico da acção, que decorre na década de 60, num Portugal enclausurado pelo moralismo e intimidação do regime salazarista. E, se os primeiros movimentos da câmara, num percurso por um areal, revelam um cadáver irreconhecível rodeado por cães famintos, este é apenas o princípio de um novelo complicado que será desfiado ao longo do filme. Desde logo, uma primeira pista nesta sequência inicial – os sapatos trocados nos pés da vítima, um símbolo de traição – indiciam a “patada do morto”, expressão que o inspector encarregue do caso utiliza para referir a capacidade deste ainda causar problemas aos que o sobrevivem. Será tortuoso o caminho da investigação percorrido por este inspector que, através de reconstituições reais e imaginadas, parte o filme em dois momentos: o que aconteceu antes da morte e a inquirição póstuma ao que terá sucedido. Balada da Praia dos Cães (1987), uma adaptação do romance homónimo de José Cardoso Pires, apresenta um país parado no tempo, mas à beira da ebulição, com as suas personagens cercadas por suspeitas, num estado de indefinição suspensa. É um filme que pode servir de exemplo para resolver o problema português do cinema comercial vs de autor, que consegue ser um filme comercial mas inteligente e complexo, que exprime ao mesmo tempo uma visão própria do realizador, uma ideia de cinema, sem alienar parte do público, numa altura em que ainda se procurava tal combinação. No centro do filme está a personagem do inspector Santana, convocado a decifrar se o cadáver é consequência de um crime político ou passional, enquanto a PIDE espreita por uma resolução. Santana, eficientemente interpretado por Raul Solnado, é um homem solitário, reservado e meticuloso, derrotado mas decidido a não sê-lo mais uma vez. A partir do momento em que o corpo é identificado como pertencendo a Dantas, um capitão do exército foragido da prisão, a atenção do inspector recai sobre os seus companheiros de fuga: um colega do exército, um arquitecto e uma misteriosa mulher.
Recapitulemos, como Santana repete ao longo do filme. A partir desta revelação o filme desenrola-se em dois sítios fechados: o que se passa na cabeça do inspector, à medida que tenta desvendar o que aconteceu, e o que se passou na casa onde o grupo esteve escondido depois da fuga do capitão da prisão. De cenário em cenário, o inspector percorre os espaços deixados vazios pelos suspeitos, enquanto persegue as pequenas pistas-símbolos que vão surgindo: o carro de fuga, um livro sublinhado, uma cabeleira loura com um buraco de bala, uma fotografia com uma nota escrita. A sequência em que visita a casa pela primeira vez sugere o método de Santana, com a sua análise à cena de crime como se se tratasse de uma autópsia, sem tocar em nada mas a tentar descortinar o significado de cada artefacto encontrado. É aqui que Fonseca e Costa se permite uma maior liberdade estética, quando mostra como Santana imagina a chegada à casa do capitão com Mena, a tal mulher misteriosa. Santana olha por uma janela, e de repente torna-se noite na paisagem, e vemos os dois fugitivos tornados amantes, numa cena com pouca luz e dominada por sombras e desejo. É uma recriação fantasiada que recorre mais tarde no filme, quando Santana imagina novamente um encontro amoroso entre Dantas e Mena, num elevador, numa obsessão que indicia o fascínio de Santana pelo comportamento de Mena, como agente de ruptura no mistério que o impede de dormir.
Será na casa transformada em esconderijo, onde decorre grande parte do filme, que o mistério começa a ser explicado, através das interacções entre as personagens que o ocupam. Local onde os foragidos escondem-se à espera de novidades, a tentar perceber o que fazer a seguir, é um local de geografia incerta, onde os diferentes quartos parecem iguais e o tempo custa a passar. Uma espécie de huis-clos existencial, um limbo de onde não vale a pena sair – estão cercados e a fuga parece impossível, e, rodeados, a revolução que esperam ainda não existe lá fora. A claustrofobia dentro da casa é uma imagem espelho de um país sem saída. Tal como, à medida que o inspector Santana descobre pistas sobre o que aconteceu, a acção na casa avança em paralelo, como um reflexo dos seus pensamentos.
No interior, o capitão Dantas é um fogo que arde dentro de uma casa fechada, personagem volátil que desconfia dos seus companheiros, que maltrata Mena por desconfiar da sua fidelidade. À procura de uma desculpa para lutar, para impor a sua ordem, a revolução que procura é um caos pessoal. Os outros homens na casa parecem impotentes para se oporem, receosos pelo seu futuro se nada fizerem mas incapazes de agir – outra metáfora para a crise de identidade do país. É sobretudo na relação de Dantas com Mena que o filme, e Santana, se detêm. Mena, numa interpretação enigmática e frágil de Assumpta Serna, aparece ora como uma mulher arisca, segura de si, ora submissa e insegura, numa relação que Santana não consegue aceitar. Porquê a passividade de Mena, qual a atracção entre os dois? Ao longo de vários inquéritos depois da morte de Dantas, Mena não parece a mesma rapariga que aceitaria uma relação como a que transpira ao longo da investigação, e pode estar ali a chave do mistério, do filme, da tal crise de identidade.
Parte da dinâmica de Balada da Praia dos Cães reside no contraste entre Santana e Mena, nestas duas personagens antagónicas. Se a personagem de Santana surge no princípio do filme como um substituto do espectador dentro do filme, a sua obsessão por Mena e o seu comportamento encontra resposta na curiosidade voyeurista do espectador, obrigado a escolher um partido.