CINECLUBE DE JOANE

Outubro 2024
Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão

Programa mensal

de Basil da Cunha
3 OUT 21h45
de Francis Ford Coppola
10 OUT 21h45
de Rodrigo Moreno
24 OUT 21h45
de Maurice Pialat
31 OUT 21h45

As sessões realizam-se no Pequeno auditório da Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão. Os bilhetes são disponibilizados no próprio dia, 30 minutos antes do início das mesmas.

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31 21h45

A VIDA ÍNTIMA DE UM CASAL Maurice Pialat


Já Não Há Cinéfilos?!, Maurice Pialat, Outro País, Outro Cinema

Numa pequena cidade em Auvergne, uma mulher com cancro vive os últimos meses de vida. Ao seu redor, a sua família – um marido infiel, um filho que é como o pai e a sua nora — tem que acompanhar a sua agonia. Ela finalmente desaparece, deixando um grande vazio, mas a vida deve continuar. A terceira longa-metragem de Maurice Pialat, de um ciclo de oito filmes que dedicaremos ao cineasta francês.

Título Original: La Gueule Ouverte (França, 1974, 80 min)
Realização e Argumento: Maurice Pialat
Produção: André Génovès
Interpretação: Nathalie Baye, Monique Mélinand, Philippe Léotard, Hubert Deschamps
Fotografia: Néstor Almendros
Montagem: Arlette Langmann
Distribuição: Leopardo Filmes
Classificação: M/12
Pialat dos nossos amores Vasco Câmara, Publico de 21 de Junho de 2023 O maior cineasta francês? O mais influente dos últimos 30 anos? A propósito de uma retrospectiva com as suas longas, o retrato de um irascível, generoso, mal-amado e, finalmente, bem-amado.
Quando Maurice Pialat, já passando dos 40, realizou a primeira longa, o sublime A Infância Nua/L’Enfance Nue (1968), um dos dois títulos do ciclo inéditos em Portugal, a Nouvelle Vague levava avanço de dez anos e instalara-se no poder. O ressentimento forjaria então a relação de Pialat com, contra, esse cânone, permanecendo numa constelação em redor, próximo de Jacques Rozier ou Jean Eustache. François Truffaut, o cineasta, era uma das suas bêtes noires (já quanto ao homem, admirou a sua verticalidade perante a morte). Se Truffaut foi instrumental, como produtor executivo, na concretização de A Infância Nua, a rugosidade do filme, o sentimento de abandono como catástrofe, que levou Pialat a identificar-se com as crianças do filme temporariamente recolhidas por famílias de adopção, divorciava-se formal e ontologicamente do romanesco de Os 400 Golpes (1959).
A imagem do realizador sentado num banco dos Campos Elísios, em Paris, a ver a fila de espectadores que se formava no cinema em frente para verem Quando o Amor Acaba/Nous ne Vieillirons pas Ensemble (1972) não é mito urbano. Um milhão de franceses arriscaram indignar- se, magoar-se (gente de outra cepa...) com a crueldade, a humilhação, entre Jean Yanne e Marlène Jobert, o casal que Maurice Pialat, logo no romance que escrevera antes do filme, arrancara à sua vida íntima. Esse jeu de massacre consigo próprio e com a sua história era uma novidade à beira da indecência — estava-se a milhas do espectáculo da intimidade que explodiria, já indecente, décadas depois. Assim como era abrupto o corte com o puritanismo herdado da Nouvelle Vague, contra o(a) qual Pialat dir-se-ia que filmava o plano em que a mão de Jean (Yanne) invade, fora de campo, o sexo de Catherine (Jobert).
O fracasso de A Vida Íntima de um Casal/La Gueule Ouverte (1974), que deu medo de ver porque cada elipse sobre o sexo era seguido de um olhar frontal sobre a morte, sublinhou em Pialat o sentimento de injustiçado. Afinal, O Último Tango em Paris (1972), de Bertolucci, e sobretudo Lágrimas e Suspiros (1973), de Bergman, tinham sido sucessos. Philippe Léotard é o duplo de Pialat; Nathalie Baye outra encarnação de uma das mulheres da sua vida. A mãe dele está em lenta agonia. Philippe comporta-se como o pai se comportou com a mulher, infelicidade que o filho herda e reitera — tal como a infelicidade dos pais foi responsável pelo sentimento de abandono que serviu de propulsor à vida e obra do filho Pialat. O soberbo travelling final que nos abandona à nossa sorte não nos arranja remédio. Mas o filme não termina aí. Depois dele, Pialat mostra por que é que não desiste do humano.
Outro dos títulos, neste ciclo, comercialmente inéditos em Portugal, Primeiro Passa no Exame/Passe ton bac d’abord (1978) é dos mais pardos filmes do universo já de si glauco de Maurice Pialat. O cineasta que olhou de forma sublime a infância e que se sentiu, mal começou, como velho que perdera um comboio que partira sem ele, não tem como esconder a sua distância perante uma geração, a dos jovens, mas também a sua lucidez (ou será cinismo? Se isso existe em Pialat, é mesmo só aqui) perante as suas impotências. A imobilidade, porque pode pouco o grito (C’est la vie!; Non, c’est pas la vie), promete já algo para as suas vidas de adultos. Primeiro Passa no Exame é o título que mais influência teve junto dos que vieram depois e começaram a filmar jovens à Pialat, assumindo-se ou não como descendentes. Pelo menos assim foram vistos Cédric Kahn, Claire Denis, Sandrine Veysset, Catherine Breillat, Patricia Mazuy...
Loulou (1980) é o centro do vulcão biográfico que projectou a sua lava na obra de Pialat. É um exemplo maior da sua praxis. Ele e a companheira Arlette Langman são os argumentistas da história da burguesa Nelly (Isabelle Huppert, na verdade sendo Arlette), do seu encontro com a performance sexual do proletário Loulou (Gérard Depardieu com o seu melancólico narcisismo), por quem ela trocou André (Guy Marchand, na verdade Maurice). Exemplar é a estrutura brutalista como pièce de resistance, colocando o espectador dentro de uma inevitabilidade: algo já começou antes de o filme ter começado, apanhando-se os fragmentos em bruto da emoção. Foi uma rodagem tumultuosa, abandono de Pialat, gritos, estaladas, no afã de abolir a máquina cinema. Há uma geração para quem Aos Nossos Amores/À Nos Amours (1983) foi o código de acesso ao cinema de Maurice Pialat. Há uma geração para quem a “primeira vez” de Sandrine Bonnaire, actriz que o cineasta descobriu nos seus 15 anos, sublime!, sublime! (e um clássico: não era ela que estava interessada no anúncio para o casting; era a irmã), foi também uma desfloração. Para além do maravilhamento perante Bonnaire, o “caso” Pialat manifestava-se ainda, nesta “adaptação” a partir de uma memória pessoal de Arlette Langman, numa sequência que deu brado em que o próprio Pialat, na personagem do pai, procedia a um ajuste de contas à mesa da refeição com os elementos da sua família. Isto é, fundamentalmente: com os actores que as interpretavam. É outro dos filmes em (des)equilíbrio sobre a convulsão emocional, sobre os gritos e as bofetadas. Regressar a ele é um dos mais delicados passos a dar neste ciclo, porque certamente se confirmará que raramente se pode regressar a casa. Isto é, ao lugar onde fomos felizes.
Quase dois milhões de franceses viram Police (1985), o maior sucesso de bilheteira de Pialat. Situado entre Aos Nossos Amores e Van Gogh, corresponde ao período em que o realizador pôde ambicionar o centro: orçamentos folgados, trabalhar com estrelas (Depardieu e Sophie Marceau em Police; Jacques Dutronc em Van Gogh), encontro, enfim, com os espectadores. Com o seu temperamento ciclotímico, arrasou evidentemente o seu filme: a relação com Marceau foi inexistente; o polar, policial à francesa, denunciava o embuste. Severidade excessiva: Police é uma das revelações da retrospectiva. Não há qualquer falsidade no exercício de “filme de género”. Pelo contrário: é a possibilidade de concretização do filme popular, como o dos anos 30, tão amado por Pialat. Os sublimes rostos de Depardieu e Marceau, a sua despudorada inocência no meio da brutalidade, fazem vislumbrar essa utopia.
É o momento mais icónico de Pialat-cineasta, o punho erguido perante os assobios em Cannes à Palma de Ouro a Ao Sol de Satanás/Sous le Soleil de Satan (1987): “Se não gostam de mim, saibam que também não gosto de vocês!” Depois do pico — Pialat queria a Palma, que aconteceu no momento em que se afirmava como central à indústria francesa, mesmo filmando contra ela — veio o desânimo: quando soube que a decisão fora uma segunda escolha, após a chantagem ensaiada por um dos jurados, o cineasta Elem Klimov, perante a perspectiva de triunfo de Olhos Negros, de Nikita Mikhalkov (Klimov ameaçara abandonar o júri). Ao Sol de Satanás passou então a ser, para Pialat, “a mais merdosa” das Palmas. Nem tanto. Mas é o seu filme menos pessoal ou aquele em que ele se mete através de uma admiração literária, George Bernanos, e de uma curiosidade poucas vezes confessada perante o místico.
Quando convencia Jacques Dutronc a ser Van Gogh, isto contou o actor, Pialat sossegou-o: não precisava sequer de tirar os seus icónicos Ray-Ban. Talvez não fosse boutade, porque mesmo a orelha cortada, como uma das retóricas do mito, o espectador tem de, através da abstracção, imaginar. No lugar de Van Gogh está Pialat, necessariamente, que também foi pintor. Não pintor frustrado, segundo o próprio, porque foi ele que percebeu que não tinha condições para continuar (e teria preferido ser pintor médio, se o conseguisse, a ser cineasta magnífico). Van Gogh (1991), ainda assim, é menos uma (auto)biografia do que um documentário descarnado sobre a vida e a luta que ela exige. No final de carreira, Pialat aproximava-se de um dos cumes de toda a sua obra que esteve no momento inicial: a minissérie La Maison des Bois (1971), infelizmente ausente do ciclo.
Com uma peça de câmara, O Garoto/Le Garçu (1995), com o cansaço dos casais e dos jogos dos machos mais as suas solidões, Maurice Pialat terminou. E Depardieu, mais uma vez o seu duplo, encerrou o registo que foi o mais melancólico e comovente da sua “obra”. Coube-lhe estar, nesta última vez como cúmplice, no lugar de pai. É o home movie que ocupa agora o centro, mesmo não havendo “isso”, centro, no cinema do realizador, no espaço da guerra amorosa, das mulheres, ex-mulheres e amantes. Maurice, pai tardio, aos 66 anos, olha para o filho, Antoine, de quatro anos, que crescerá sem ele. De forma justa, então, porque se sobrepõem ao esgotamento, infância e morte, desde sempre os temas dos maiores Pialat, reposicionam-se uma última vez. Mas, exauridos os gestos, caminha-se para o silêncio. Tal como se anunciaram as mortes em todos os seus filmes: ça y est, já está!, Maurice Pialat, 1925-2003.