CINECLUBE DE JOANE

Novembro 2024
Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão

Programa mensal

de Miguel Gomes
7 NOV 21h45
de Thomas Arslan
14 NOV 21h45
de Michel Franco
21 NOV 21h45
de Leonor Areal, Tiago Pereira
28 NOV 21h45

As sessões realizam-se no Pequeno auditório da Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão. Os bilhetes são disponibilizados no próprio dia, 30 minutos antes do início das mesmas.

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21 21h45

MEMÓRIA Michel Franco

Sylvia (Jessica Chastain) é uma assistente social e mãe solteira que vai à reunião da turma de liceu. Isso não só abre feridas antigas como a faz cruzar-se com Saul (Peter Sarsgaard) um homem que se senta ao lado dela, sorrindo, e a persegue depois quando se vai embora. Na manhã seguinte, encontra-o a dormir perto de sua casa, liga ao irmão dele e percebe que ele sofre de demência com início precoce, com desorientação e problemas de memória. Ela reconhece-o, mas ele diz não se lembrar dela. É assim que começa um complexo drama do mexicano Michel Franco que teve estreia no Festival de Cinema de Veneza de 2023, onde competiu pelo Leão de Ouro, tendo conseguido um prémio Volpi Cup para melhor actor para Sarsgaard.

Título Original: Memory (México/EUA, 2023, 100 min)
Realização e Argumento: Michel Franco
Interpretação: Jessica Chastain, Peter Sarsgaard, Donald McQueen, Aliya Campbell
Produção: Michel Franco, Eréndira Núñez Larios, Alex Orlovsky, Duncan Montgomery
Fotografia: Yves Cape
Montagem: Oscar Figueroa, Michel Franco
Distribuição: Films4you
Estreia: 18 de Julho de 2024
Classificação: M/14
“Memory”: os esporos de quem somos Por Susana Bessa, à pala de Walsh A vida tem tendência a alinhar-se aos filmes de Michel Franco. Talvez por estes serem feitos da dureza do mesmo tecido. No momento em que escrevo este texto a internet inunda-se de ensaios e artigos de opinião, já para não falar das muitas newsletters de escritores, em resposta à chocante revelação de Andrea Skinner, filha da escritora Alice Munro, no jornal canadiano Toronto Star. Cabeçalhos de várias publicações – do The Atlantic ao The Guardian – falam da dupla face de uma figura célebre, um tão amado ícone da literatura canadiana, que arrecadou o prémio Nobel em 2013. Tenho a certeza de que não tenho de precisar o que aconteceu – quem estiver desse lado já certamente saberá do que falo. De repente, abre-se a caixa de Pandora não só da violência silenciada ao longo dos anos, do trauma inescapável durante a infância, mas mais do que tudo o olhar devorador e acutilante colocado nas relações entre mães e filhas. Memory (Memória, 2023), o mais recente filme do realizador mexicano, é um dos seus filmes mais astutos por englobar a complexidade destas temáticas. Sob o batimento da pontuação contemplativa capaz do confronto, este debruça-se no discurso da memória (matéria maleável e efémera) em relação ao trauma, mas também em relação ao que acontece quando a memória deixa de pertencer ao corpo, e o corpo, em resposta, começa a desintegrar-se. Que é o mesmo que dizer que o filme posiciona-se sob as emoções da infância, esse tempo inultrapassável e impotente, lugar sem pertença de onde só se pode fugir.
Ainda antes do que se tratará do discorrer de um dueto de actores no apogeu das suas carreiras profissionais, o filme lança-nos para a boca do dragão com um “Eu lembro-me” no seio de uma reunião de alcoólicos anónimos. Sylvia (Jessica Chastain) é uma mãe solteira, alcoólica em recuperação e uma cuidadora de um lar que vive uma vida rotineira, sem nunca fugir à estrutura imposta por ela mesma, desde o nascimento da filha Anna (Brooke Timber), agora uma jovem de 13 anos. Franco não precisa de muito para desenvolver quem esta mulher é no ecrã. A sua linguagem corporal rígida, irremediavelmente inquieta e receosa, e o consecutivo armar do seu apartamento à chegada a casa, equivalente a um tique nervoso (curioso como Queens em Nova Iorque é, de repente, num filme de Franco um bairro perigoso), é suficiente para falar do passado traumático desta mulher, a viver em cima da vida de forma ascética em vez de caminhar dentro dela. Até que num momento explicitamente seco, um homem senta-se, sem proferir uma palavra, na cadeira ao lado da de Sylvia, que tinha sido empurrada pela irmã para uma high school reunion. Quando esta se levanta, ele segue-a até casa, e ali passa à noite em frente ao prédio. Nem a chuva o afugenta. O que esta não sabe é que este homem, Saul (Peter Sarsgaard), sofre de demência precoce. Assim que se cruzam, Sylvia acusa falsamente Saul de abuso sexual (aí está o Franco que tão bem conhecemos, o seu típico overplotting, com cadência marcadamente ácida), o que estranhamente conduzirá ao desenvolvimento de um encontro entre ambos, ao tipo de relação que une duas pessoas uma a outra para lá de classe (Franco regressa sempre a uma temática que tem vindo a trabalhar: o trauma e a doença não escapam à família burguesa), para lá do passado ou do presente, e para lá de tudo o que se agarra a uma racionalidade socialmente concebida.
Eis então o palco para uma mulher atormentada pela memória do passado e um homem atormentado pelo presente que não o deixa reter qualquer pedaço de futuro, seres iguais num mundo que os encurrala. Juntos, irão percorrer a severidade de Franco e a sua exploração distante (no sentido do filme ser um objecto cerebral que não se oferece a uma continuidade enraizada no intelecto). Por falar nisto, relembro o memorável texto de Ricardo Vieira Lisboa sobre o cinema da abjecção aquando da estreia de Nuevo Orden (Nova Ordem, 2020) e as suas palavras: “(…) o realizador filma com um olho de vidro.”, com as quais concordo ainda que a minha experiência pessoal com o cinema de Franco (ou de Ulrich Seidl, em particular) não se reveja na sua secura. Incomoda-me mais a inércia a que se alia. Entendo que essa forma de crueldade, especialmente porque tem tendência a auto-justificar-se mais à frente enquanto comentário sobre a natureza humana ou as políticas que a circundam, seja, por vezes, necessária. Por exemplo, pensando em Memory, fala Franco de consentimento? Não, mas está lá, se nisso quisermos agarrar. E não digo só em respeito ao que acontece a Sylvia. Penso aqui em Saul, tão desprotegido e inconsciente quanto uma criança abusada, a desenvolver uma relação romântica com ela.
Memory pode ser o primeiro sinal de que Franco poderá estar a expandir a sua visão para o pessimismo, e com isso a sua obra. A dessensibilização pode permanecer envolta num empenho ao que é clássico, quadrado e gélido-cerâmico (de forma alguma é evidenciado na sua forma cinemática um savoir-faire), sem recorrer a artifício, mas nota-se mais maturidade em Franco desta vez. O vidro é um espelho e o espelho cinema. Sente-se tudo no seu acto de não-tocar, nos seus maioritariamente fixos quadros dentro dos quais as personagens existem e de onde são forçados a sair para noutro caberem, e assim sucessivamente. A frustração do espectador é, como na vida, imensa. É uma realidade que faz lembrar o melhor que o rectângulo plano do teatro tem para nos dar. É fisicamente seguro, contido, previsível e repetível. Não há, ao que parece, elemento de perigo. Mas ele está lá, carente de uma carga explosiva que exteriorize o que sentimos sem ver.
Num momento específico, depois da introdução da mãe de Sylvia na vida de Anna – Sylvia vivia afastada dela há muitos anos, nunca lhe tendo sequer apresentado a filha -, o filme de Franco que, numa primeira instância, parecia ser feito de banalidades e ideias ocas do que define personalidade, incendeia-se do horror que a nada se pode agarrar quando Sylvia é surpreendida pela invasão da mãe na vida da sua jovem filha. E o passado vem então ao de cima. Sylvia acusa a mãe de não a ter protegido. A mãe acusa-a de mentir. A irmã confessa o que sabia ser real, depois de tantos anos de silêncio. Temos à nossa frente um quadro móvel. Antes de mais, o marido da irmã de Sylvia, homem pernicioso que faz ricochete da verdade. Depois, a filha de Sylvia à esquerda e Saul à direita na entrada da divisão, entre as duas portas. Lá ao fundo, no palco da vida, achatado e cinzento, onde é auscultado o desespero na verdade por confirmar, as três mulheres, as duas irmãs (Sylvia no meio), e a mãe no centro a fechar a roda. Há vários elementos em jogo: a mãe que se ilude para poder continuar a viver com ela mesma, a irmã (a sempre subestimada Merritt Wever) que confessa ter ocultado a verdade por nutrir ciúmes do carinho especial do pai pela outra filha. Com o aprofundar da relação, o cerco vai-se intensificando. É um momento gutural, feito de um realismo gladiador, mas macio nas suas bordas porque foge ao conflito. Porque só sugere. Porque não responde. Porque sufoca a dor e favorece o mutismo. Fica aquém de génio por não mergulhar o suficiente na escuridão.
Assim é Memory. Em muitos respeitos uma aguarela sobre o desaparecimento do Eu em fases diferentes da vida. Noutros, um duelo notável dentro de um lugar indefinível habitado por duas pessoas que perderam a capacidade de viver livremente; um lugar sem história. A conclusão a que Franco chega fará talvez torcer o nariz dos espectadores mais cínicos, especialmente dos conhecedores da sua obra. Creio que é também a razão pela qual a crítica internacional ficou mais enamorada com ele desta vez. É surpreendente como o realizador escolhe abraçar a doçura momentânea e colocar de lado a provocação. É um risco a correr, um que gostamos todos de acreditar que será valoroso. Porque cortante já são todas as palavras não-ditas que nos definem, todas as vezes que uma mãe se escolheu a si mesma em detrimento de proteger a sua filha. Ainda assim, isto não significa que Franco tenha rejeitado a apatia ou até que tenha passado a favorecer menos a estagnação. Continua sem nos dizer o que fazer com tudo aquilo, toda aquela segurança fechada a sete chaves, e a libertação que se segue.
A Franco parece interessar-lhe apenas como duas pessoas conseguem salvar-se uma à outra; como Anna salva Sylvia, como Sylvia existe apenas por causa de Anna, e depois como Sylvia e Saul se salvam revendo-se um no outro. No final, “aproveitamo-nos” todos uns dos outros.