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"As Filhas do Fogo" – que é também o título do espectáculo multimédia que Pedro Costa criou
com o ensemble de música barroca Os Músicos do Tejo, fundado e dirigido pelo maestro Marcos
Magalhães e pela cravista e produtora Marta Araújo – estreou-se, fora de competição, no Festival
de Cinema de Cannes. Em nove minutos é-nos contada a história de três irmãs cabo-verdianas
(interpretada pelas cantoras Elizabeth Pinard, Alice Costa e Karyna Gomes) que chegam à
Europa depois de uma devastadora erupção do vulcão da ilha do Fogo.
OSSOS – nova copia digital - Este foi o terceiro filme de Pedro Costa que, com "Sangue" (1991) e
"Casa de Lava" (1995), já tinha mostrado ao público a matéria que compunha os seus filmes.
Crónicas urbanas de miséria ou tristeza, que impressionam pela sua crueza, o filme desenrola-se
num bairro de lata em Lisboa, onde Clotilde (Vanda Duarte) e a sua família partilham uma barraca
com Tina (Maria Lipkina) e o seu companheiro. Clotilde desloca-se para o seu trabalho como
mulher-a-dias, como faz todas as manhãs, enquanto Tina dá à luz numa maternidade. O filme
ganhou o prémio de melhor fotografia no Festival de Cinema de Veneza, em 1997.
Pedro Costa: “É preciso manter o fogo vivo todos os dias, a música não o deixa apagar-se” _ Entrevista Luís Miguel Oliveira, Público A curta As Filhas do Fogo e a reposição de Ossos, restaurado, levam-nos ao reencontro com o cineasta. Uma história de fidelidade, filme a filme.
As Filhas do Fogo começa no escuro e no silêncio. Aos primeiros sinais do rumor da banda de som, fiat lux e fiat umbra, faça-se luz e faça-se sombra, para revelar um ecrã em tríptico, três enquadramentos em coexistência geometricamente rigorosa, cada um deles habitado por uma mulher cabo-verdiana.
A do lado esquerdo canta enquanto caminha diante de um fundo de estilhaços luminosos que sugere lava incandescente, a do lado direito está semiescondida por trás de uma porta, um clarão a iluminar-lhe o rosto quase sempre em silêncio excepto quando, como se fosse um coro, dialoga com a canção da primeira. A do enquadramento ao centro começa prostrada sobre uma encosta vulcânica – lembra alguns dos mais famosos planos de Casa de Lava, outro filme de Pedro Costa, de 1995, com Inês de Medeiros – e vai-se erguendo, sempre em silêncio, para acabar de pé, uma linha recta a ligar o chão ao céu crepuscular.
A canção é um lamento em crioulo, musicalmente compósito, que fala de morte, sofrimento, solidão, cansaço, trabalho, renascimento.
Quando a canção acaba e as mulheres desaparecem da imagem, vêm planos de A Erupção do Vulcão da Ilha do Fogo, o filme do geógrafo Orlando Ribeiro (1911-1997) que Pedro Costa já tinha usado em Casa de Lava (com outros planos), outra rima com esse filme.
As últimas imagens, que mostram um grupo de pessoas diante de uma casita na encosta do vulcão, reforçam a rima, mas também aproximam As Filhas do Fogo de Vitalina Varela (2019), a última longa-metragem do realizador, que terminava num regresso a Cabo Verde e com um plano da construção de uma casa.
É uma descrição tão objectiva quanto possível dos nove minutos de As Filhas do Fogo, a curta- metragem de Pedro Costa que esta semana se estreia em sala, em sessão dupla com Ossos, o filme de 1997 que ressurge em cópia resultante de um recente restauro digital (o restauro digital mais impressionantemente belo, palavra que neste caso é sinónimo de “fiel”, de fidelidade à natureza da imagem analógica, que já vimos).
O que liga um filme e outro é o mesmo que liga qualquer deles ao Casa de Lava tão citado no parágrafo anterior, e que liga quase todos os filmes (chamemos-lhes, para simplificar, os “filmes das Fontainhas” mesmo quando as Fontainhas deixaram de existir) que Costa fez desde então: metáfora que não se esgota pelo excesso de uso, é essa lava que escorria pela encosta do vulcão que o realizador não deixou, ainda, de trabalhar.
A posteridade de Casa de Lava fez dele o momento realmente inicial da obra de Costa, remetendo O Sangue (1989) para uma condição preambular (belíssimo preâmbulo, mas um preâmbulo). As Filhas do Fogo liga-se directamente a esse momento inicial, e é o próprio realizador que, em conversa com o Ípsilon, o sublinha: “Vem das recordações das mulheres que conheci em Chã de Caldeiras na Ilha do Fogo, em Cabo Verde, quando estava a filmar Casa de Lava”.
“[Cheguei ao Fogo] com as máquinas e a tropa toda, para mais uma daquelas operações exóticas e turísticas de que o cinema contemporâneo tanto gosta, estava muito perdido e foram elas que, de certa maneira, me ajudaram a pensar melhor e a deitar fora as ideias parvas”. Perguntaram- lhe: “O que é que vieste aqui fazer? O que é que o cinema vem aqui fazer?”. E ainda lhe disseram pior: “Tu não sabes o que queres fazer, mas nós podemos ajudar-te a descobrir a porta para as nossas vidas.”
De Vanda Duarte, que entra como protagonista no cinema de Pedro Costa em Ossos, justamente, a Vitalina Varela, estas figuras femininas nunca deixaram de povoar o seu cinema, de o assombrar e de orientar rumo à porta para as vidas delas. “Têm nomes e formas diferentes”. Em Juventude em Marcha (2006) “são violentas e gritam, tentam matar-se e matar os maridos e os filhos, e, aliás, já em No Quarto da Vanda [2000] morriam de overdose”. Em Cavalo Dinheiro (2014) são apenas “um murmúrio, a melhor parte do Ventura, aquela força que o não deixa desistir nem morrer, e a própria Vitalina talvez se complete em muitas dessas mulheres, através de uma forma narrativa mais clássica, mais dramatúrgica, como se costuma dizer”.
A origem prática directa de As Filhas do Fogo está num espectáculo com o mesmo título que encenou com Os Músicos do Tejo, em 2016. Pensou separar as três irmãs cantoras em espaços diferentes, mas sem as separar no canto e na música, pensou “na arquitectura e na fulgurância do contraponto barroco, em que as vozes chamam-se, respondem-se, dialogam, ecoam-se”.
Filmou cada uma das cantoras, durante uma semana, como se fossem screen tests, até no sentido warholiano do termo. “Depois, montei-os lado a lado, como numa instalação de museu. E quando os vi a 'passar' de ecrã em ecrã, a associar-se ou a dissociar-se, pareceu-me que o contraponto funcionava e não apenas musicalmente”.
Admite que se pense, pelo ecrã tripartido, no Napoleão de Abel Gance ou no segmento de John Ford para o filme de conjunto A Conquista do Oeste, mas foi sobretudo atrás de uma ideia de Godard, que dizia que “uma só imagem nada mostra e que a verdadeira imagem é sempre produzida por um conjunto de imagens”. Muitos espectadores lhe têm dito que este filme lhes permite “pensar e fazer a sua própria montagem, viajar entre as três irmãs enquanto escolhem ouvir a canção cantada por uma ou outra irmã...”
Outra vez a música
Não é a primeira vez que Pedro Costa compõe um filme a partir de matéria eminentemente musical, mas o filme em que o tinha feito, Ne Change Rien (com Jeanne Balibar), não tinha nada que ver com a lava cabo-verdiana. Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que, desde o princípio (os The The em O Sangue), há por norma nos seus filmes momentos fortíssimos com canções, que se recortam de forma espectacular, como se fossem os singles dos filmes: as mornas de Casa de Lava, os Wire em Ossos, os Tubarões em Juventude em Marcha e Cavalo Dinheiro…
Filmar música e usar música gravada num filme são obviamente coisas muito diferentes. Da primeira, filmar um músico ou cantor, o realizador gosta da “emoção particular, muito forte” que isso lhe suscita. “Impressiona-me a coragem, a disciplina, um sentido do colectivo que chega a tomar a aparência da pura solidariedade...”, algo que considera raríssimo numa equipa de cinema. “Tenho pensado nas diferenças do trabalho em música e em cinema, e nem falo da falta de respeito pelo tempo de concentração, de ensaio e de repetição... mas no cinema detesta-se o pensamento em acção e a rotina do trabalho, vive-se na urgência de apanhar a emoção do actor, de apanhar o avião, de passar à cena de perseguição, de captar o real a toda a brida”. Quanto a utilizar música previamente gravada, nota como isso pode ser uma facilidade perigosa: “Não seria justo que a música viesse apenas maquilhar, decorar ou emprestar emoção e sentimento onde eles não existem... porque nem o realizador nem a câmara nem os técnicos nem os actores souberam trabalhar, e sabemos como é fácil a inclinação do cinema para a gordura romântica e para a mistificação, não são poucos por aí os que andam com a ‘magia do cinema’ sempre na boca”. Resume: “Nos filmes que fazemos, é preciso manter o fogo vivo todos os dias, a música não o deixa apagar-se.”
Ossos foi o primeiro filme depois de Casa de Lava – “e o resultado imediato daquele 'susto' de que falei a propósito das mulheres do Fogo”. Por um lado, afastou-se do modelo de organização e produção mais convencional, porque percebeu “que não vivia bem aquela espécie de sprint cego e surdo”. Depois, porque a génese de Ossos é uma consequência directa da interpelação das pessoas que conheceu em Casa de Lava. Deram-lhe cartas e mensagens para entregar aos familiares imigrados em Portugal. E ele foi entregá-las à Amadora, ao bairro das Fontainhas, à mais marginalizada cintura suburbana de Lisboa.
“[Descobri] um bairro onde eu achava que podia pensar mais facilmente a minha vida no cinema, e finalmente conseguia acreditar nalguma coisa: que tinha trabalho naquele bairro e com aquelas pessoas”. Ossos foi a sua entrada nas Fontainhas e a despedida de tudo o que o desgostava na maneira de fazer filmes. “Aprendi não só a entrar pelas portas, mas também a encontrar a coragem para dizer adeus e sair, e esta é uma verdadeira questão que os cineastas raramente se põem: não apenas como dominar um espaço, mas saber quando partir e como regressar”.
Os mandamentos de Costa
Desde então há apenas uma história de fidelidade, filme a filme. “É sempre a mesma bitola: todos os produtores, as comissões de financiamento acham que o meu próximo filme será a mesma coisa, sempre com 'os mesmos', etc., que não trago nenhuma novidade nem variedade”. Acredita que as coisas pioraram muito, em termos de condição de produção, porque a “inflação” manda – “para os realizadores e programadores, a inflação artística; para os produtores e sales agents, a inflação e a engenharia financeira dos orçamentos”. Propõe como alternativa uma consciência, a de que “apenas podemos fazer os nossos filmes com os restos de um país, restos de casas, restos de uma comunidade, restos de pessoas”.
Mas não é só a produção, acrescenta, lamentando que a distribuidora Nos, que detém os direitos de Ossos, não tenha cedido uma única das suas mais de cem salas espalhadas pelo país para albergar sessões desta reposição do filme. “Por favor, tenta não cortar isto que vou dizer, que é uma espécie de nota moral”, pede. Acedemos, vamos tentar não cortar: “Há dois ou três bons filmes por ano – e estou a ser simpático. O resto é fancaria e, como dizia o Dziga Vertov, nessa não se deve tocar com os olhos. É claro que precisamos de grandes filmes e de novos grandes cineastas, mas é vital que os cineastas mais jovens tenham consciência dos seus direitos e deveres:
Pedro Costa: “É preciso manter o fogo vivo todos os dias, a música não o deixa apagar-se”
– lutem para que o vosso filme vos pertença;
– podemos ser donos dos nossos meios de produção: câmaras, luzes, som, montagem, é tudo é digital, é tudo cada vez mais barato e todo o material nos deve pertencer;
– não é preciso pensar tanto nos problemas artísticos, pensem nos problemas de produção e, com trabalho e sorte, a arte virá por arrasto;
– realizar é produzir e vice-versa;
– combatam os orçamentos inflacionados, saibam sempre de onde provém cada centavo do vosso orçamento;
– voltem costas aos espertalhões que vos aliciem com engenharias financeiras esquisitas;
– nunca cedam a nenhuma proposta de nenhum sales agent, são uns parasitas que vão roubar o fruto do vosso trabalho;
– pensem em reduzir o mais possível as diferenças salariais no interior da vossa equipa, ela tem de ser competente, mas também sensível e vulnerável;
– não desatem a fazer pitchs sobre os vossos projectos, aí começa a capitulação e a formatação do vosso segredo por programadores sem cabeça nem escrúpulos;
– assegurem-se dos vossos direitos, e por escrito. O resto são os deveres. Para com nós próprios, para com o cinema, para com o que nos rodeia”.