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Samuel é encontrado morto após cair da varanda da sua casa, situada nos Alpes franceses, onde vivia com a mulher, Sandra, uma famosa escritora alemã, e Daniel, o filho de onze anos de ambos. Quando as autoridades chegam para tomar conta da ocorrência, a dúvida instala-se: terá sido acidente, suicídio ou homicídio? Depois de algumas inconsistências no seu testemulho, Sandra torna-se suspeita de assassinato, algo que é agravado quando Daniel refere as recentes discussões entre o casal. Durante a investigação e, mais tarde, no longo processo em tribunal, o casamento deles é escrutinado ao mais ínfimo detalhe, com Daniel a ser pressionado a descrever a relação dos pais. Isso vai criar uma inevitável tensão na relação entre mãe e filho. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2023 e considerado o melhor filme pela Academia do Cinema Europeu, “Anatomia de Uma Queda” está nomeado para 11 Césares e para cinco Óscares da Academia de Hollywood, entre eles os de melhor filme, realizador e actriz principal.
Anatomia de Uma Queda: entre vertigens e espelhos, o cinema de tribunal revela-se, finalmente, enigma Susana Bessa, Publico de 31 de Janeiro de 2024 Saint Omer, O Julgamento, O Processo Goldman. A estes junta-se o labirinto por resolver que é Anatomia de Uma Queda. Desafiam a fórmula do cinema de tribunal.
A determinada altura do thriller psicológico Anatomia de Uma Queda, a mulher e escritora que pode ou não ser responsável pela queda súbita do marido do chalé que habitam nos Alpes franceses profere ao velho amigo e advogado que “o julgamento não é sobre a verdade”. Ênfase no que poderá ser escrutinado enquanto verdade no lugar onde uma só acção, táctica ou contra- argumento são suficientes para informar ou contrariar toda a história de uma pessoa. Desde a sua estreia em Cannes, no ano passado, onde arrecadou a Palma de Ouro, tem sido elogiado tanto pela crítica como pelos espectadores do mundo pela forma aliciante com que agarra na fórmula do filme de tribunal, que se supunha intemporal e autoritária nos seus mecanismos, e a subverte com tanta confiança.
Através do liberal, mas bravo sistema legal francês, que também se verá desconstruído, o filme que foi buscar o seu título à obra-prima de Otto Preminger Anatomia de um Crime (1959) trabalhará a percepção alheia daquela relação conjugal e vida familiar, num filme onde não há testemunhas oculares (o casal tem um filho invisual e um cão).
É, como tantos outros, filme-processo que não foge à corrida do “quem matou?”, mas que neste caso não produz respostas. Expõe o ridículo de um veredicto simplista no meio da complexidade da natureza humana. Como avaliar fiabilidade e precisão com instrumentos judiciais que pendem entre dois pólos extremos? A realizadora Justine Triet e o realizador e actor francês Arthur Harari, seu parceiro de vida e aqui parceiro também na escrita do argumento, parecem querer, antes de mais, redefinir ritmo, tom, forma e perspectiva da representação cinemática do julgamento, tal como deveria ser contemplado na vida real. “É o lugar onde tentamos organizar e compreender o caos das nossas vidas”, disse a realizadora ao Huffington Post France.
Mas não é o único. Por coincidência ou sinal dos tempos – ou talvez ambos (ao Ípsilon, Cédric Kahn, realizador de O Processo Goldman, falou de “uma necessidade de ver as palavras serem usadas para chegar a um fim preciso e justo”) –, só no último ano, três outros filmes de autor, diferentes em género e forma, todos ficcionados mas factualmente reais, excepto a criação absoluta de Triet e Harari, foram palco de uma torrencial vontade de expor um desejo global por um qualquer sentido de justiça.
Num movimento conjunto, filmes assinados por Alice Diop (Saint Omer), Ulises de La Orden (O Julgamento), Cédric Kahn (O Processo Goldman) e Justine Triet (Anatomia de uma Queda) fazem avançar uma das fórmulas originais oferecidas pelo cinema americano enquanto símbolo de resistência: o filme de tribunal.
Os últimos anos têm sido palco de movimentos sociais como o Me Too e o Black Lives Matter, e fenómenos divisivos como a “cultura do cancelamento”. Esta “vaga” de cinema parece acompanhar os ecos do coro militante. Tanto lhes acena como lhes responde. Talvez seja por isso que, embora sofisticada, se sinta vinagrosa no tom. São filmes que procuram na sobriedade as vertigens habituais do cinema de tribunal e que não têm a necessidade de tomar partido de forma imediata, de ser solidário com algo ou alguém. Melhor do que isso, o trabalho é feito dentro do espectador e a longo prazo.
Há muito que as artimanhas de Hollywood, os seus mundos construídos e o ver da história a ser contada já não têm o mesmo poder. Em eras explosivas como a actual, estes realizadores propõem uma aproximação diferente ao espectador, que consiste na oportunidade de meditar sobre o que permanece ficção.
Quebrar fronteiras
A colheita começa com Saint Omer, que chegou aos cinemas portugueses em Maio de 2023. Filme da franco-senegalesa Alice Diop, veterana com duas décadas de carreira atrás da câmara, Saint Omer é lugar inabitável, mas impossível de abandonar.
A realizadora estica a fórmula do filme de tribunal até aos confins mais complexos e elásticos da ambivalência, colocando uma escritora, grávida de poucas semanas, a assistir a um julgamento de uma mulher acusada de infanticídio e que alega sofrer de amnésia. Ambas são negras e franco-senegalesas. Para além de pedir revisão às narrativas do passado, nomeadamente às que se prendem a estruturas de poder estabelecidas, localiza a experiência colectiva da maternidade que liga estas duas mulheres no jogo da lei vs. linguagem. “Se estou a mentir, não consigo saber porquê”, explica-nos a mulher no banco do réu.
De mãos dadas com Anatomia de Uma Queda, o drama de procedimento é cavalo de Tróia para o estudo de personagem, não só naquele momento no tempo. Os enquadramentos rigorosos de planos longos ajudam a que se veja para lá dela. É uma cadeia de transmissão: não é só esta mulher que é alvo de abertura forense, mas todas as mulheres como ela. Saint Omer não aborda a noção de veredicto sequer, só está interessado em tudo aquilo que é violento de mais para compor uma leitura ou formulação. Dizia Diop à Academia dos Óscares que “não há uma só verdade no filme”. Há várias. Uma diferente em cada espectador.
Igualado em bravura e níveis de experimentação, temos O Julgamento, do argentino Ulises de la Orden, documentário que passou pelo DocLisboa e está na plataforma de streaming Filmin desde o final de 2023. Não se abre à ambiguidade e falta de resolução dos outros filmes de tribunal de que aqui falamos. Composto por retalhos retirados de 530 horas de material de arquivo, cortados, montados e organizados em capítulos, do julgamento civil de 1985 contra os líderes da ditadura militar argentina, o filme usa o tecido visual do cinema para reavivar o processo de contaminação fascista e evitar o seu ressurgimento. Neste televisionar do julgamento, nasce o filme de tribunal. “Nós queríamos contar a história que conta o julgamento, não o julgamento em si”, disse Ulises de la Orden à Screen Slate. O realizador refaz o que se passou no tribunal, durante aqueles 90 dias, tempo em que foram abordados 709 casos de crimes dantescos de tortura e extermínio. “Começámos com os vários temas (…) Nós queríamos oferecer todos os argumentos de ambos os lados. Continuamos à procura das sínteses, onde a ‘coisa pura’ se encontrava”, continuou. Como em Saint Omer, o corpo da memória pessoal e colectiva é activado. É um filme onde a democracia sai vitoriosa e que, por isso, sublinha as actuais ameaças à sua estabilidade. A experiência imersiva pede a participação do espectador para guardar este “arrumar” de arquivo para a perpetuidade. Trata-se de ficcionar para cravar a verdade dentro do maior número de pessoas.
Por sua vez, o formidável Cédric Kahn, realizador e actor francês, apresenta o exemplo mais teatral, o mais vertiginoso-demagogo. Ou não fosse o foco colocado no segundo julgamento de Pierre Goldman em 1976, o intelectual judeu polaco, metade homem, metade mito, ícone da militância da extrema-esquerda francesa, que foi misteriosamente assassinado. Com O Processo Goldman, que passou pelo Leffest e se estreou em Janeiro nas salas de cinema portuguesas, voltamos ao sistema legal francês, mas numa encenação da realidade destilada no nervo do cinéma vérité, com o trabalho de câmara a mostrar-se independente das marcações dos seus actores – há zooms e panorâmicas arrastadas e há também planos simultâneos e inversos onde se exige a presença de todos –, num filme de arestas suaves que simula um documentário do seu tempo. Uma procura quase jornalística de depuração do carácter deste homem do espectáculo, violado pelo anti-semitismo e preconceito policial.
Exactamente como acontece com os três outros filmes aqui citados, não é só Goldman alvo de análise, mas tudo o que este representa. E como o que este representa pesa para aqueles que se reúnem naquela sala naquele espaço no tempo. Há conflitos ideológicos, há uma relação de antagonismo com o advogado Georges Kiejman (coincidentemente, interpretado por Arthur Harari). Há muitos intervenientes, que providenciam as palavras que violam como aquelas que resgatam.
Ao contrário do que Justine Triet dizia à Cahiers du Cinéma sobre o seu filme de tribunal, “onde o discurso satura e quase previne a acção”, Kahn está focado em colocar o espectador na posição de um membro do júri no “debate interno sobre o facto de a sentença e o ponto de vista se alterarem com o proferir de cada nova palavra”, como conta ao Cineuropa. É terreno movediço.
Lugar de ficção.
No cinema, quando uma câmara se abre a um rosto, há sempre um discurso e um propósito: não interessa se é confronto ou adulação, está ali para iluminar. Seja aninhado no reino das realidades da não-ficção ou nas narrativas ficcionais que procuram replicar ou até mesmo rectificar o que não ficou nos livros da História, o cinema é, antes de mais, chamamento e evidência. E o cinema de tribunal uma exacerbação dessa fantasmagoria. Dilemas morais, esquemas políticos, questões de perspectiva e realidade/representação, ele é tanto presença quanto prova.
Esta fórmula, que remonta ao início do século XX, tão americana como o western, já nos ofereceu algumas obras-primas marcantes. Manifestou a crença firme na pureza da lei, como se a justiça só se materializasse numa sala de tribunal com um bater de um martelo e muito alvoroço à mistura (mesmo que 90% das acções judiciais sejam resolvidas fora dela). Se, por um lado, sublimou o grande plano em A Paixão de Joana D’Arc (1928), de Carl Dreyer, por outro, construiu o motor de argumentação de Anatomia de Um Crime, de Otto Preminger, sublinhou a importância da dúvida em Doze Homens em Fúria (1957), de Sidney Lumet, e questionou a relação entre o sistema legal e a banalidade do mal (Julgamento de Nuremberga (1961), de Stanley Kramer). “Quando era mais jovem, achava que a verdade acontecia na sala de tribunal, durante um julgamento. Mais tarde, percebi que é um lugar ficcional, onde há duas ficções, e a verdade encontra-se no meio delas. Aquele não é o lugar onde a verdade vem ao de cima. Temos de ser nós a decidir”, deixou claro Justine Triet no New York Film Festival, numa conversa curiosa em que a realizadora afirmou estar na posse da verdade, tendo-se recusado a desvendá-la à sua actriz.
Harari, por sua vez, diz que era importante chegar a um lugar onde o próprio criador deixa de saber que verdade é essa. Alice Diop também já tinha alegado que “não há verdade do autor ou do realizador.” Repensar a fórmula é refazer a ideia do fazer da justiça no cinema, sem fogo-de- artifício.